segunda-feira, 8 de julho de 2013

SUS ignora 13 milhões de pacientes com doenças raras em todo o país


Desde a véspera, Alisson teimava com a mãe, Gleice Machado, que o levasse à cidade vizinha para comprar um estribo, a última peça que faltava para completar o arreio do cavalo. O garoto insistia, o sol de cinco da tarde batia tímido na pequena mercearia da família, e a cabeça da mãe ia longe, aflita. Como o menino de 10 anos que, dias antes, havia retirado mais dois cânceres da pele poderia andar a cavalo sob o sol? Habilidoso, Alisson maquinava uma saída, alimentando o sonho de ser peão, comum entre meninos do noroeste goiano, onde o cerrado rasteiro é um convite às cavalgadas.
— Vou ser o cavaleiro da madrugada — sorriu, iluminando ainda mais a fisionomia ruiva e cheia de sardas.
Alisson e outros 19 moradores do Recanto das Araras — um povoado da pequena Faina, distante 250 quilômetros de Goiânia — têm xeroderma pigmentoso, doença rara que atinge uma pessoa em 1 milhão. Hipersensíveis à luz, eles têm mil vezes mais chance de desenvolver câncer de pele do que uma pessoa normal.
Deide, à esquerda, e Djalma moram desde que nasceram no vilarejo: só podem pegar sol antes das 10h ou depois das 16h
Deide, à esquerda, e Djalma moram desde que nasceram no vilarejo: só podem pegar sol antes das 10h ou depois das 16h Foto: Ailton de Freitas / Extra
Nem todas as 30 famílias do vilarejo têm pessoas com xeroderma, mas a estimativa é de que todos sejam portadores do gene causador da doença. O sol arde, maltrata, machuca, deforma. O drama maior, porém, está na maneira como o poder público lida com eles. Têm de peregrinar pelo país, de cirurgia em cirurgia, dependendo de doações de filtro solar e da boa vontade de médicos para o tratamento.
Mas os moradores de Faina não estão sós. A exemplo deles, milhões de outros brasileiros são portadores de enfermidades raras, a maioria de origem genética e incurável, de nomes complicados, como mucopolissacaridose, neurofibromatose e epidermólise.
Gleice Machado e seu filho Alisson Machado: o menino tem xeroderma diagnosticado desde os 2 anos
Gleice Machado e seu filho Alisson Machado: o menino tem xeroderma diagnosticado desde os 2 anos Foto: Ailton de Freitas / Agência O Globo
Não menos complexa é a situação que enfrentam. A Organização Mundial da Saúde define como rara a doença que atinge até 1,3 a cada 2.000 pessoas. Por serem pouco frequentes, são desconhecidas dos médicos. O diagnóstico depende muitas vezes de testes genéticos, caros e fora do rol de exames cobertos pelo Sistema Único da Saúde (SUS). O quadro se complica diante da falta de geneticistas — são apenas 156 no país — e da limitação do SUS, que só tem protocolos para tratar 25 das sete mil doenças raras identificadas. Invisíveis, muitos optam por se esconder, fugindo do preconceito.
Hoje com 38 anos, o sorveteiro Djalma Antônio Jardim convive desde os 9 com as cirurgias para tirar cânceres de pele. De lá para cá, foram mais de 60, tantas que não sabe precisar. Aos 19, fez a mais agressiva, quando retirou um olho. Não entra em salas de cirurgia há três.
— Já perdi um olho, o nariz, a metade do rosto, os dentes, os lábios. Agora só me resta a esperança.
Usando uma prótese em grande parte do rosto, Djalma conta que é um dos poucos que têm o xeroderma e cujos pais — até onde se sabe — não são parentes entre si. O biólogo Carlos Menck, o principal pesquisador da doença no país, explica que o isolamento geográfico de Faina propicia casamentos consaguíneos, quase sempre entre primos, o que aumenta o risco de mutações genéticas.
Menck recolheu amostras de saliva e sangue de 150 moradores da região e pretende, em um ano, responder quem apenas é portador do gene e quem tem a doença — é possível ter o gene e não desenvolver o xeroderma.
Baseado no relato de uma moradora morta há dois anos, aos 102, Menck acredita que o gene defeituoso é de origem portuguesa. Ela contava que os Freire, os Gonçalves e os Jardim chegaram ali em 1705, vindo de Portugal.
Foto: Infográfico: Kamilla Pavão
Fruto de um casamento entre primos, Deide Freire também carrega no rosto as cicatrizes da mutação. Já viajou pelo país em busca de tratamento. Hoje, fala com dificuldade, brigando com a prótese ainda grudada por durepoxi — não consegue marcar no SUS uma cirurgia para fixá-la em definitivo.
A partir deste domingo, o EXTRA conta a história de famílias com diferentes doenças raras, de quatro estados do país. Pessoas que, a exemplo de Alisson, Deide, Djalma e Gleice, lutam para conseguir atendimento, e que provam a cada dia que suas vidas, mais do que raras, são extraordinárias.
fonte jornal extra



Sem comentários:

Enviar um comentário