Roberto Ferreira toca quase 20 instrumentos e se orgulha de
ter criado uma orquestra em uma escola de Antares. Hoje, dá aula para 700
crianças - Alexandre Cassiano / Agência O Globo
RIO — A cena é rotineira para crianças que estudam no Ciep
Roberto Morena, em Paciência, mas desta vez foi filmada e, ao ser compartilhada
no Facebook, teve mais de 200 mil visualizações em apenas três dias. Com violão
nos braços, um professor canta com um grupo de pequenos para distrai-los de um
tiroteio que ecoa do lado de fora da escola, em Paciência. Sentadas no chão,
umas 30 crianças de até 11 anos cantam e gesticulam como se fosse dia de festa.
Foi na manhã de sexta-feira, dia 26. Mesmo sem saber quem era o professor, o
secretário municipal de Educação, Cesar Benjamin, compartilhou o vídeo em sua
página na rede social, dizendo que “são esse heróis que seguram a rede” e “me
dão força para prosseguir”.
— Tem muita gente me procurando, o próprio secretário acabou
de telefonar. Quer me encontrar na quinta-feira — conta, surpreso, Roberto de
Oliveira Ferreira, de 56 anos, que leciona há 14 na unidade escolar. — Já fiz
isso muitas vezes. Quando acontece um tiroteio no entorno, as crianças pensam
no pai, na mãe e entram em desespero. Coloco todas no corredor, que está sempre
limpinho, e vamos cantar. Elas até esquecem dos tiros, é o milagre da música —
resume.
Às vezes o “espetáculo” é breve, apenas quinze ou vinte
minutos. Outras, dura quase o tempo de um show de verdade - houve dias em que a
cantoria passou de uma hora. No episódio de sexta-feira passada, os tiros
passavam muito perto da escola. O diretor adjunto pediu a Roberto que começasse
a cantar. “Claro”, respondeu, já pegando seu inseparável violão. A maioria das
músicas que ele ensina é de sua própria autoria, não raro em parceria com
professores de outras disciplinas. No vídeo que viralizou, estão todos cantando
“Criança esperança”. Diz um trecho: “Para brotar do meu peito / dentro do meu
coração / muita alegria, mil fantasias, paz e mais compreensão. /Música,
brindes e cores / sonhos de um mundo melhor / força criança, criança esperança
/ fé que levanta o astral”.
— Se você observar a coreografia verá que elas estão se
comunicando em libras. Temos crianças com deficiência auditiva na escola,
queria que todas participassem, por isso inclui essa segunda linguagem, depois
de pedir às professoras que me ensinassem os gestos. Comecei a ver o brilho no
olhar das crianças — conta o professor, casado e pai de duas filhas.
SEMINARISTA EM SÃO PAULO
Roberto é um homem realizado. Antes de se tornar músico, foi
seminarista na cidade de Agudos, interior de São Paulo, onde aprofundou seus
estudos em teoria musical e aprendeu instrumentos como piano, flauta e trompete
— ele toca quase 20, incluindo vários instrumentos de percussão. Foi lá, entre
os frades franciscanos, que conseguiu seu primeiro violão: em 1978, após vencer
um festival organizado no seminário.
Estudei por 60 dias,
queria muito ganhar, fiz três composições. Era um violão simples, mas que foi
muito importante na minha vida — conta, emocionado.
Desistiu do seminário e mudou-se para Petrópolis, onde fez o
conservatório de música e, depois, formou-se em pedagogia e música na
Universidade Católica (UCP). Cantava no coral da instituição, criado pelo
renomado maestro Marco Aurélio Xavier. Depois de formado, voltou a morar em
Xerém, onde foi criado, e lá abriu uma escola de música. Prestou concurso para
lecionar no município em 2001. Começou a dar aulas na Escola Municipal
Aldebarã, na favela de Antares, em Santa Cruz. Ele afirma que “ali começou a
grande história da minha vida”.
— Numa sexta-feira, último tempo de aula, eu tinha uma turma
de 5ª série. Milagrosamente, 80% da turma queria aprender a tocar flauta —
recorda Roberto. — Nascia a Orquestra de Flautas Estrela Maior. Ganhamos o
primeiro lugar no Festival da Canção das Escolas Municipais (Fecem), em 2005,
com a música “Bicho do mato" (composição sua). Era uma pequena orquestra,
as crianças tocavam “Wave”, “Garota de Ipanema”, “Maria, Maria”. Tocavam até
uma sinfonia de Mozart em flautas doces de R$ 1,99.
Quanto mais aprendiam, mais aumentava a sede de aprendizado
dos alunos. Com a ajuda dos pais, a turma confeccionava em sala de aula
instrumentos como chocalhos, ganzás e triângulos. Roberto ficou quase dez anos
em Antares. Saiu em 2010, após a escola trocar de diretor pela quarta vez em um
ano. Diz que não conseguia mais fazer seu trabalho, que “não tinha mais apoio
da direção”. Nessa época, já estava no Ciep Roberto Morena, onde ganhou outro
Fecem, em 2009, com a canção “SOS Natureza” —, e também no Ciep Major Manuel
Gomes Archer, em Santa Cruz. Hoje, o professor tem cerca de 700 alunos em vinte
turmas, do 1º ao 6º ano.
— “SOS Natureza” foi feita em parceria com uma professora de
Ciências. Um aluno de 10 anos cantava sozinho, era emocionante. Essa música se
tornou um hino da escola, é cantada pelos alunos nas festividades. A gente pode
usar a música para falar sobre meio ambiente, matemática, qualquer coisa —
afirma.
Com sua experiência, Roberto poderia lecionar em colégios
particulares, mas nunca quis. Sente que seu trabalho pode ter um impacto maior
na vida das crianças em Paciência. Fez o concurso da prefeitura em um momento
de muita dificuldade em sua vida. Sem saber o que fazer, aoinde ir, confiou no
invisível.
— “Deus, vou aonde o Senhor me mandar”, eu rezava, e fui
parar em Antares. Tremi quando cheguei lá. Era um prédio muito feio, com marcas
de tiro. Havia um senhor sentado com um cajado na mão e várias cicatrizes no
corpo: era o vigia do páteo — recorda. — Ex-alunos me procuram até hoje, são
pessoas boas, pais de família, alguns tocam até hoje, um deles trabalha no
Teatro Municipal e está estudando para ser maestro. Emprestei minha batuta para
ele, anos depois ele me disse que havia comprado outra, mas pediu para
continuar com a minha.
Roberto criou uma banda no Ciep de Paciência (”a garotada
toca bonitinho, é a única escola com banda na região”). Com bumbo, caixas,
tarol, pratos e a melodia guiada por uma lira, o grupo tem uns 20 alunos e
ex-alunos. Ano passado foram oito desfiles com a banda nas comunidades do
entorno da escola. Dos tambores saem músicas que vão de Ary Barroso a Tim Maia,
passando também com canções cívicas e folclóricas. Nas horas vagas, Roberto
também se dedica à música: semana passada compõs um samba em homenagem ao
bairro de Santa Cruz, que completa 450 anos em 2017. Gosta de tocar com os
amigos e de fazer uma seresta com samba canção, enquanto alimenta um sonho: que
sua música “Criança Esperança” seja tocada no especial da TV Globo.
— Lá na escola as crianças adoram. A gente fica aqui nesse
anonimato, mas quem sabe um dia esse sonho se realiza.